sábado, 28 de novembro de 2009

Anotações sobre a cidade de Salvador


Almandrade


Com o passar do tempo as cidades se transformam. A cada ciclo econômico, uma nova imagem e uma nova configuração urbana se formam. Um passeio pelo cotidiano da cidade do Salvador, mostra que a cidade hoje, é uma totalidade de territórios reservados ou codificados para um determinado uso, uma totalidade de aposentos, de fatos, de acontecimentos, de tradições, de histórias e de memórias que o esquecimento encobre na viagem do tempo.
Da Praça da Sé ao Shopping Barra, do antigo centro aos vários centros e subcentros descentralizados, do acarajé ao hambúrguer, dos conjuntos habitacionais onde uma força de trabalho disputa metros quadrados de espaço pouco habitável à monumentalidade de um centro administrativo; "a cidade se espalha em milhares de olhos, em milhares de objetivas" (Benjamin), se fragmenta no trânsito, no comércio, na publicidade, na moda, no trabalho e na festa; se mostra com outras fisionomias, menos o carnaval, embora mais profissional na violência e na engenharia de som, resistiu, permanecendo no centro tradicional... O olhar pouco crítico e o devaneio observam e registram particularidades irreverentes que determinam a geografia e o cotidiano contemporâneo da cidade, sem a nostalgia dos tempos em que a elegância, a economia e o poder desfilavam na rua Chile.

PRAÇA MUNICIPAL
A primeira praça do País, criada por Tomé de Souza, antigo endereço do poder federal, depois estadual. Atualmente sem sua função e significação plena, é uma praça que guarda na sua arquitetura e na sua organização espacial a memória de um passado; teve sua sintaxe e sua semântica alteradas, em meados da década de setenta, por uma cirurgia urbana que demoliu dois dos seus prédios históricos. Foi a violência de uma certa noção de progresso que sempre danificou cenários de muitas cenas da cidade que saíram de cartaz.
A Prefeitura Municipal depois de circular fora do centro histórico voltou à Praça Municipal e se instalou num novo palácio de aço e vidro, sobre um jardim que era muito mais a cicatriz de uma demolição. Um projeto apressado, sem o encanto de uma arquitetura "pós-moderna", mas acabou se acomodando ao ambiente, estabelecendo uma dialética entre o novo e o antigo.

CAMPO GRANDE
Um jardim público para o luxo de outros tempos, hoje, simbolizando a favelização dos espaços públicos, uma espécie de periferia em pleno centro. A imagem de um cotidiano tenso, sem afetividade, sem credibilidade; o fim da praça como um lugar de encontros, de ociosidade, do flerte, do uso do tempo livre para o deboche da vida.
É como se a cidade rejeitasse o seu passado, a sua memória, para viver um presente sem história. Mas sem o passado sobrevivendo no presente, não haveria duração, somente instantaneidade (Bérgson). A exemplo de outras praças, o Campo Grande não foi desprezado totalmente, sem o cuidado da administração pública, ele é freqüentado, principalmente nos fins de semana, como área de lazer e de encontros amorosos, por uma população sem poder aquisitivo para freqüentar os labirintos de consumo dos shoppings. Sujo, mal iluminado, sem o seu antigo charme, o Campo Grande sobrevive à decadência do lugar público. Finalmente depois de longos anos abandodado, o Campo Grande foi submetido a uma reforma.

ESTAÇÃO DA LAPA
Terminal de transportes coletivos que não se chega a lugar nenhum, mas possibilita o acesse à área central da cidade, depois de uma caminhada cansativa por escadarias e circulações ociosas. Um espaço público que já nasceu decadente, cansa o corpo e desperdiça o tempo. Sujeira, alto índice de poluição, manutenção onerosa, nenhum atrativo, nenhuma qualidade de lugar público. Sua ocupação é justificada pela falta de opção para se chegar ao centro, ou para se deslocar a outros bairros da cidade, uma vez que se trata de um ponto final do transporte coletivo; é lugar de passagem de uma grande parte da população que se utiliza desse sistema de transporte.

SHOPPING BARRA
Uma intervenção urbana que modificou a organização física e simbólica de um bairro de predominância residencial; comprometeu áreas verdes, alterou o sistema viário e o hábito de moradores do entorno. Criou-se um novo marco referencial para a cidade, um novo espaço da realidade cruel do mundo da mercadoria. Como os demais shoppings, seu interior é uma micro cidade do capitalismo moderno, artificializada em todos os sentidos: iluminação, clima, solidariedade emoção da compra. Social e geograficamente bem situado; luxo e libido se misturam na hiperrealidade deste shopping. Butiques, magazines, lanchonetes, cinema, flerte, rostos bronzeados e vestes da moda. O novo centro cosmopolita do consumo e da vida pública seletiva.

CENTRO ADMINISTRATIVO
Um centro inteiramente descentralizado longe dos congestionamentos da área central e das outras atividades da cidade, ocupa amplos espaços, tanto arquitetônico como urbano, com um complexo sistema viário interligando e isolando suas instituições. É a cidade das operações burocráticas do Estado, enquanto o poder propriamente dito está infiltrado e hierarquizado em todo o corpo da cidade. Vazia de outros sentidos; sem alegria, sem melancolia, impermeável ao sentimento e à intimidade, longe dos encontros possíveis é o centro asséptico do poder com seus principais ícones sinalizadores de uma função da cidade.

CENTRO DE CONVENÇÕES
O shopping dos congressos. Um espaço exclusivamente espetacular que acomoda qualquer fala, uma arquitetura halterofilista: grandes espaços ociosos, um sistema estrutural que poderia ser outro, uma funcionalidade que cansa. É capaz de dispersar os discursos mais contraditórios. Localizado, estrategicamente com relação aos outros centros, os eventos que neles se instalam não incomodam o cotidiano nem as outras operações da cidade.

CAMPUS UNIVERSITÁRIO
A cidade abstrata do conhecimento. Um laboratório de preparação e aperfeiçoamento de um quadro técnico, ou mão-de-obra especializada. Reuni, segrega e dispersa estudantes sem tempo de assistir aulas, em unidades da educação superior. Muitas vezes, entre uma aula e outra, um longo deslocamento físico. Grandes espaços desertos de pessoas, significações e idéias; individualismo, indiferença... O fim da solidariedade estudantil. A crise do saber, a divisão social do trabalho e o modelo político se manifestam na organização do espaço. Nestes vazios, vive o cotidiano apressado do conhecimento.

McDONALD'S
O novo centro gastronômico como ponto de referência, no bairro do Rio Vermelho. Uma arquitetura que mais se assemelha a uma fortaleza discreta e sem qualquer sensualidade de restaurante de classe, para proteger e divulgar o fetiche de uma alimentação urbana industrializada: rápida, eficiente, quase sintética, que faz do estômago um depósito de substâncias pouco nutritivas. A cidade ganhou um novo serviço urbano e um estranho hábito de alimentação. Economia e desperdício, com a substituição do almoço pelo hambúrguer; mais embalagens descartáveis para o acúmulo de lixo exótico que a cidade terá de absorver ou conviver com ele.

NOVA ORLA
A vulgarização da paisagem com a destruição de características significativas da imagem de uma cidade, para fazer da orla um lugar comum. Uma civilização do culto ao automóvel e de hábitos "modernamente" selvagens capaz de promover seu poder extravagante de dominar o espaço natural com o planejamento da indiferença, para torna-lo mercadoria. O que mudou na orla atlântica do Salvador, foi a readaptação de uma área da cidade para a indústria do turismo, do lazer e da especulação imobiliária. Pouco interessa o pedestre, o transporte coletivo, os serviços de infraestrutura de captação e tratamento dos esgotos; interessa, sim, a monumentalidade urbana e o espetáculo de um urbanismo rodoviário.
Alterou-se o conforto ambiental, a emoção do usuário, o imaginário da cidade e o mar vai se transformando em depósito de dejetos, diante do olhar desconfiado e triste, de quem olha para trás e observa na velocidade do tempo, o avanço irreversível do deserto sobre a beleza que a natureza nos oferece. A realidade do capital apenas se ocupa da presença mágica do mar.

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